31 de julho de 2020

45. Você se gosta do jeito é?


A casa estava limpa. Era impossível ver algum pó nos móveis. As escadas que davam para o primeiro andar estavam tão limpas que era possível ver o reflexo, principalmente depois de eu ter encerado duas vezes.
Suspiro cansada, pois era quinta feira e eu já tinha limpado a casa quatro vezes. Aos quarenta e quatro anos sinto o cansaço além da conta. Logo, vou até a cozinha preparar um chá para ler um livro na sacada.
A água dá seus primeiro chiados e então despejo na xícara com um saquinho de camomila. Também era um hábito comum na minha vida.
Talvez eu gostasse da minha rotina.
A vista da sacada era bonita, o lago no centro e cheio de prédios ao redor. Em um deles meu filho estava morando com sua família. Lembro-me de quando Hugo me perguntou ‘’Porque você limpa as escadas todos os dias? ‘’
Ninguém nunca tinha me perguntado algo do tipo, afinal porque reclamar da limpeza? Me parece algo óbvio. No entanto, não sabia o que responder. Dei de ombros como se fosse mais uma daquelas coisas que não conseguimos explicar na vida e então respondo ‘’eu gosto, e acho que gostaria que as pessoas vissem nossa casa arrumada. ‘’
Ele não parece entender, mas também não precisava, ele estava ocupado demais procurando sua bola para jogar no campo perto de casa.

Apenas anos depois, quando fui a uma psicóloga, que ela voltou a me perguntar sobre meus hábitos de limpeza. Era um assunto que me deixava desconfortável, tanto que estava decidida a não ir mais para as sessões de terapia. Mas, ainda tinha meia hora pela frente.
‘’Você se importa com a aparência da sua casa e sua também, se arruma e deixa tudo perfeitamente no lugar, posso ver você querendo arrumar as revistas da mesa entre nós. ‘’ Me senti pequena com a sua constatação.
‘’Isso é bom não é? ‘’
‘’Depende se isso está atrapalhando a sua vida, não é bom. ‘’
‘’É como um vaso, ele se quebrou e mesmo que eu tente consertar e parece bom, para mim ele sempre vai ser quebrado. ‘’
‘’Isso é sobre você? ‘’, perguntou anotando algo.
‘’Talvez. ‘’, digo cutucando o esmalte da minha unha, e imediatamente paro, iria ficar horrível.
‘’Percebeu que isso tudo está ligado ao fato de não amar a si mesma? Hugo se foi e uma parte de você também se foi, a parte que você mais gostava talvez, ou a mais importante. Então o que sobrou não é suficiente, pois você percebe as rachaduras em você, e só consegue olhar para elas como se elas fossem apenas feias. ‘’
Meu filho Hugo tinha morrido há um ano e até aquela sessão de terapia eu nunca tinha percebido o quanto eu precisava de ajuda, eu havia ignorado o problema por muito anos, me concentrando em outras coisas, a limpeza da minha casa, o meu marido, meus filhos e minha carreira profissional. Até que a realidade te encontra e não há mais como adiar aquela conversa com você mesma.

Amor próprio.
Aquela palavra vinha me perseguindo desde a sessão de terapia, talvez eu tivesse com medo do que ela poderia carregar, ou a verdade que revelaria sobre mim.
Após tomar banho antes de dormir, outro hábito, vejo meu reflexo e não gosto do que vejo. As olheiras estão mais suaves, mas encontro o rosto de alguém presa dentro de um controle que estava a impedindo de viver.
O controle foi o meu amigo após a morte de Hugo, mas agora ele parecia estar apenas me deixando para morrer.
Era hora de dizer adeus ao controle e quem sabe se amar mais. Até as minhas falhas. Amar o corpo que me acompanha há quarenta e cinco anos, amar as rugas do meu rosto que me lembram momentos inesquecíveis, amar a cicatriz da cesária que trouxe meus três filhos ao mundo, amar a minha bagunça.
Pego a tesoura e corto o cabelo que estava na altura do peito, deixo as mechas caírem sob meus pés enquanto as lágrimas descem incontroláveis. Eu não chorava desde o enterro do meu filho. Aquelas lágrimas eram diferentes, não de tristeza, era libertação, e um abraço de mim mesma a todas as minhas falhas, hábitos e erros que já cometi. Porém, significam também amor, felicidade e amabilidade.
Observo o resultado no espelho, está bem curto, perto da orelha, estava em um formato meio estranho e irregular. Provavelmente precisaria ir ao salão no outro dia, mas sorri mesmo assim. Era uma nova fase.

44. Perder alguém não melhora com o passar do tempo.
45. Eu gosto do que vejo no espelho
‘’Mãe, você não vem? ‘’, pergunta Pedro na sacada. Estava perdida em meus pensamentos que nem me dei conta da hora. Era meu aniversário de quarenta e oito anos. Pela primeira vez não limpo a casa, apenas deixo do jeito que está.
Havia algumas coisas fora do lugar, mas assim era a vida, você tentava arrumar e outras saiam do lugar, seguindo o seu próprio fluxo. A beleza não era ter tudo sob controle, mas vê-las de uma nova perspectiva, para reconhecer que tudo está no lugar em que deveria estar.
‘’Já vou, não deixe seu pai comer o bolo antes de mim. ‘’, digo sorrindo. Ele assente e sai a procura do meu neto provavelmente, aquele pensamento fez meu coração se apertar em felicidade.
Como sempre nos meus aniversários eu acrescentava um motivo na minha lista.
46. Minha família reunida.
47. Eu me amo do jeito que eu sou.
48. Então eu me considero feliz.

Ps: O texto foi inspirado na idade 45 do livro CEM: O que aprendemos na vida, isto é o título do texto, e sua linha narrativa por datas, por isso os motivos ao final da personagem.

Ps 2: Esse texto foi escrito para um desafio de escrita que participo em um grupo do WhatsApp. 

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